terça-feira

"O que seria destas praias se não fossem vocês?"

Jornal "Diário de Notícias", de 23 de Novembro de 2008

Um fogareiro, acompanhado da respectiva grelha e do carvão foram retirados de uma cavidade rochosa na praia dos Coelhos. Ficou por ali desde a última época balnear. Além de um insuflável, guarda-sóis, cadeiras, fraldas e montanhas de sacos atirados para o meio de uma figueira-da-índia, o que mais impressiona é a quantidade de garrafas de cerveja acumuladas no areal
Armei-me em afoito e paguei cara a inexperiência de deitar mãos ao lixo que "jazia" entre os espinhos de uma viçosa figueira-da-índia. Longe de mim pensar que aqueles minúsculos "pêlos" que se tinham agarrado ao polar haviam de me atormentar o resto da semana. Depois de perfurarem a roupa, cravaram-se na pele e com o passar dos dias fizeram alastrar uma mancha de pequenas borbulhas.
Deve ter sido do entusiasmo pelo empenho pessoal que depositei como voluntário na limpeza das praias da Arrábida. Desde o princípio que estava curioso sobre que género de lixo se pode encontrar após mais uma época balnear. Lá me fiz pelo trilho abaixo, rumo à praia dos Coelhos. O acesso é difícil por se tratar de uma praia natural. Resvalar está à distância de um pequeno descuido. "Começamos já a apanhar aqui e vamos descendo até ao areal", ordenou Alda Silva, uma das vigilantes da Arrábida - são apenas seis para a faixa que se estende de Sesimbra até ao Litoral Alentejano.
Já caminhava pela vereda, em fila indiana, com outros voluntários, mas apesar de não retirar os olhos no chão, não encontrava lixo. "Mesmo assim parece que não está muito sujo", comentei, ao mesmo tempo que olho para trás e vejo as minhas colegas - eu e um menor éramos os único homens do grupo - de cócoras a encher os sacos.
Talvez por nunca ter estado atento ao fenómeno não apanhei o jeito à primeira e passei ao lado de algumas garrafas, maços de tabaco e fraldas. Até que comecei a olhar para o meio dos arbustos. Já está! Eis que encontro a primeira garrafa de plástico. Depois outra de vidro e mais outra. Acabou-se o prazo para ter a coluna direita. A cada passo surgia qualquer coisa à espera de ser recolhida.
Agora a praia já estava à vista, mas não foi fácil encontrar o caminho do acesso ao areal. Tínhamos seguido pelo trilho errado, porque quem conhecia o local perdeu a rota atrás do lixo. Tivemos de passar entre os arbustos para chegar ao destino, quando surgem sinais de presença humana com largas décadas, como testemunhava a marca de uma gasosa que já não se produz em Portugal desde os anos 70. As cápsulas encontravam-se enferrujadas. Não foi preciso peritagem para se perceber que nunca este local tinha sido limpo.
A chegada à praia é marcada pelo primeiro momento de bom humor e de cumplicidade entre o grupo, que até aqui se mantinha pouco falador. Ainda não tínhamos posto os pés no areal, quando avistei um objecto colorido sobre os ramos. Estiquei-me o mais que pude e percebi tratar-se de um insuflável. "Se calhar é uma boneca das tais, tem cuidado", alertaram-me. Era mesmo um colchão de ar já furado que alguém não teve paciência para carregar até ao carro.
Na mesma zona perdia-se a conta às garrafas de cerveja. Minis, médias e de litro, acompanhadas das próprias embalagens. Em segundos, o meu saco ficou empanturrado. Já precisava dos dois braços para o carregar. Foi o primeiro a ser atado. Já na areia surge um balde repleto de mais garrafas - sempre de cerveja - denunciando uma farra recente. "Há gente que vem aqui pernoitar e enche estes recipientes de gelo para manter as bebidas frescas. Depois deixa aí o que sobra da festa", explicava uma das voluntárias mais familiarizadas com a limpeza de praias.
"Não seria mais fácil pôr aqui um contentor?", pergunto. Mas fico a saber que por ser uma praia com estatuto de natural tal não é possível. Tenho para mim que é burocracia contraproducente, sobretudo quando sou confrontado com o que vejo a seguir e descubro que as pessoas, afinal, até juntam o lixo e o guardam-no em plásticos. Mas por não terem onde os despejar, simplesmente, atiram os sacos para o meio de uma figueira-da-índia que separa o areal do início da encosta.
E eis que entro na missão mais "espinhosa" da manhã. Fui eu e Alda Silva que retirámos dezenas de sacos, guarda-sóis e as cadeiras, sendo que momentos depois comecei a sentir picadas por todo o corpo. Logrei escapar aos espinhos maiores, mas acabei traído pelos mais pequenos. À vista desarmada parecem pêlos minúsculos, mas cravados na pele têm o efeito de alfinetes.
De repente ouve-se um grito, deixando perceber que apareceu algo verdadeiramente imperdível. O grupo parou por instantes para assistir à retirada de um fogareiro, minuciosamente limpo, que estava guardado numa cavidade entre as rochas, acompanhado de uma saca de carvão, sal e da própria grelha. Também lá estava uma chávena. "Isto é de gente que costuma vir aqui, ou já cá está para o próximo Verão?", questiono. Mas as duas possibilidades são admitidas pelos mais experientes do grupo.
Só que aqui Alda Silva acciona o alerta máximo, para recordar o incêndio que consumiu a serra da Arrábida no Verão de 2004 e que inviabilizou o acesso as estas praias durante dois longos anos. Sobretudo, a partir daí, os vigilantes da natureza passaram a ser ainda mais intransigentes com qualquer fogueira na zona, embora admitam ser impossível controlar o local 24 horas por dia.
Quem conhece o fenómeno assegura que as novas gerações já não são tão adeptas de fazer lume, mas as faixas etárias mais avançadas ainda mantêm a tradição. Também as comunidades estrangeiras passam noites na praia e acendem fogueiras. Algumas manchas pretas no areal confirmam a tendência. E as garrafas de vodka vazias também...
Um colchão de esponja é, entretanto, descoberto entre os arvoredos. "Quem terá trazido isto para aqui e para quê?", pergunta uma voluntária, entre sorrisos, ao mesmo tempo que arrasta o "exemplar" pela areia para próximo de mim, numa altura em que já tento atar os sacos, à espera do barco semi-rígido, tripulado por outro vigilante da natureza, que há-de carregar o lixo pelo mar até ao Portinho da Arrábida. É lá que os serviços de limpeza da autarquia passam diariamente.
De resto, convenhamos que seria uma tarefa árdua carregar os sacos pela encosta acima, até à estrada, onde nem há contentores. Estamos a falar de uns bons 300 metros, sempre a subir, pelo que só através do mar a operação se perfila verdadeiramente viável.
Também subo a bordo e acompanho a viagem de três minutos sobre as águas do "rio azul" para desembarcar entre os inertes do Portinho, onde ajudo a descarregar os primeiros dez sacos. Os mergulhadores que tinham acabado as aulas dão gargalhadas quando me vêem com o colchão, completamente rasgado, em direcção aos contentores. "Ninguém leva para ali um colchão desses para dormir", ironizam, mas não poupam críticas à "falta de civismo de quem lá o deixou", dispara Samuel Alegria.
Confrontado com a chegada a terra firme do lixo, um dos mergulhadores não se ficou. Desceu até ao barco e ajudou a transportar os sacos. Já passava do meio-dia e ouvimos os primeiros elogios da população que se preparava para almoçar nos restaurantes lá do sítio. "Se não fossem vocês o que seria destas praias?", comenta Amélia Rijo, uma idosa que até ao ano passado também participou em algumas campanhas de recolha, justificando sentir a Arrábida como sua, mas que se viu agora forçada a parar, porque as artroses já não permitem ajudar.
A jornada terminou com um lanche de convívio em pleno Museu Oceonográfico, oferecido pela organização, que juntou os participantes, onde cada um foi relatando a sua experiência. Fiquei a saber, por exemplo, que os voluntários que ficaram na Figueirinha tiveram uma missão menos musculada do que a minha, mas certamente mais monótona. Que o diga a própria governadora civil, Eurídice Pereira, que levou a manhã a apanhar beatas de cigarros enterradas na areia. Nos dias que correm a praia mais frequentada de Setúbal ainda não tem cinzeiros.


Roberto Dores

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