"Agência Ecclesia", 31 de Janeiro de 2006
A cena passou-se, num desses dias de frio (com vento gelado, o mar de fundo à mistura com uma réstia de sol), deste Inverno em Sesimbra: um homem dormia a sesta, tendo um cão por almofada, que, por seu turno, também descansava num pedaço de relva desbotada pelo sol e a aragem marítima.
Este quadro – algo pitoresco e insólito – tanto quanto se podia perceber, não despertava a atenção de qualquer dos transeuntes. Pela nossa parte ficamos a pensar sobre aquela consonância de homem e animal, numa quase simbiose romântica e messiânica.
De facto, corremos o risco de andar tão atarefados na vida, que as pequenas coisas podem-nos escapar, por muito significativas que para outros possam tornar-se. Por outro lado, as loisas que nos preocupam nem por sombras têm tanta importância do que reparar nos marginalizados (o que não quer dizer marginais, como é o caso em presença!) da vida pela concorrência atroz, voraz e anónima.
Se, por momentos, nos detivermos a verificar, cada um de nós não passa duma multiplicidade de números para identificação, conforme a instância a que se tem de dirigir, o serviço que pretenda ou o sector em demanda. Parece que contamos cada vez menos como pessoas, pois fomos – quase deliberadamente – amputados da nossa identidade mais profunda, a de ter um nome, muito para além dos apelidos (mais ou menos pomposos) que se lhe seguem. É a força do anonimato que nos persegue nesta sociedade agressiva, mas carente de atenção, de carinho e de rosto.
Repare-se no que diz o Papa Bento XVI na sua encíclica «Deus é caridade»: ‘Faz parte da evolução do amor para níveis mais altos, para as suas íntimas purificações, que ele procure agora o carácter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da exclusividade — «apenas esta única pessoa» — e no sentido de ser «para sempre». O amor compreende a totalidade da existência em toda a sua dimensão, inclusive a temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque a sua promessa visa o definitivo: o amor visa a eternidade’ (n.º 6). - Dizia-se naquele tempo em que uns tantos se queriam equiparar aos que tinham alguma importância social, mas não tinham estatuto, embora aspirassem a manifestá-lo nem que fosse à força de comprar as regalias: ‘foge cão que te fazem barão; mas para onde se me fazem visconde’. De facto, ao vermos a recente enxurrada de condecorações, em maré de saída, pelo Presidente da República, como que sentimos alguma perplexidade pelo acto e pelas figuras envolvidas. Parece que Portugal merecia melhor!- Quando vemos crescer a promoção de tudo quanto seja de teor animal (à mistura com uma certa ecologia), nalgumas situações em desfavor dos humanos, como que sentimos uma degeneração da nossa conduta e dos valores que a norteiam. Quem não terá reparado (já) no imenso stock de comida para animais nas grandes áreas comerciais, numa quase afronta aos milhões de famintos, esfomeados e insuficientemente alimentados em tantas partes deste mundo... cão, na vertente mais ou menos humana! - Mesmo que, em finais de Janeiro, tenhamos entrado no ‘ano do cão’, segundo o calendário chinês, nada nos obriga a ter de ceder às pressões de endeusamento do mundo animal – quase roçando a animalização dos humanos – obnubilando as forças psicológica e espiritual da pessoa humana. Afinal, onde está a valorização de crescimento em humanismo nesta civilização que exalta mais as paixões do que obediência? Até onde vai descer a nossa cultura, quando teme levantar-se, preferindo antes rastejar? Como poderemos fazer sair tantos cristãos desta amorfia com que nos tentam seduzir, conquistar e embalar? Ser cidadão é ter dignidade, olhando os outros nos olhos, desvelando-lhes o rosto e apontando-lhes para o mais Além.
A. Sílvio Couto
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