sexta-feira

Mãos que falam

"Jornal de Notícias", 5 de Fevereiro de 2006

Nem quando te piraste para o Brasil com os teus amigos ricos que andam por lá a brincar aos empreendimentos de luxo e às putas ordinárias, me conseguiste surpreender.
Estou habituada a filhos da mãe como tu, se calhar por isso é que me perdi de amores por ti quando meteste conversa comigo no Verão de 88 em Sesimbra, onde apareceste do nada e eu já estava farta de namorar sempre os mesmos rapazes.
O meu pai ainda era pior do que tu, sabias? Fez sete filhos à minha mãe e mais três a outra mulher que vivia do lado norte da aldeia, separada por um riacho podre e gelado que os meus irmãos e eu atravessávamos todas as manhãs descalços a caminho da escola primária. A minha mãe dava-nos uma lata de salsichas vazia com um monte de brasas lá dentro para aquecermos as mãos durante o caminho.
Como era a mais velha, fui a última a ter sapatos. Recebi o meu primeiro par aos cinco anos, presente de uma vizinha tão pobre como nós mas piedosa comigo, como prémio por tomar conta dos filhos dela, além de vigiar os meus irmãos.
Tu não podes imaginar o que é a pobreza. O teu pai sempre teve um emprego e a tua mãe nunca se deu mal com os arranjos de costura. É claro que tu quiseste sempre mais, querias ser filho de um doutor e de uma senhora que tivesse uma perfumaria como o teu amigo Armando, esse idiota viciado em putas com quem fugiste para o Brasil à procura de carne fresca e negócios para pacóvios. Tu não podes imaginar o que é viver num quarto de uma casa abandonada no meio de uma aldeia perdida na Beira, o lixo acumulado à porta, um monte de tábuas com um fosso a fazer de casa de banho e duches de mangueira na rua, no Verão dia sim dia não e no Inverno só quando fazia sol, por causa das pneumonias.O meu pai aparecia e desaparecia, deixava alguma comida e pouco dinheiro e a minha mãe cultivava o que podia numa horta minúscula que os cães vadios acabavam por destruir.
Aprendi a ganhar dinheiro antes de fazer oito anos. Ajudava a professora a limpar a sala, entregava pequenas encomendas da venda, fazia favores a toda a gente e ia amealhando o que podia num saco de plástico que escondia debaixo das tábuas do jardim. Também roubei algum dinheiro da caixa da venda e da carteira da professora, mas foi sempre tão pouco que nunca ninguém deu por nada.
Com 15 anos peguei nos meus dois irmãos a seguir a mim e meti-me à boleia para Lisboa. Fui levada por um casal sem filhos para Sesimbra onde comecei a trabalhar num café para lhes dar metade do meu ordenado que dava para pagar a escola dos meus irmãos. Foi então que decidi que um dia ia ter um restaurante e que ia ser muito rica. Aprendi a cozinhar com a mulher do dono do café e juntas começámos a servir almoços. No Verão de 88, quando tu apareceste, dei o golpe na caixa do café, deixei uma carta e dinheiro suficiente para os meus irmãos e fugi contigo para o Algarve.
Cinco anos depois éramos donos do restaurante mais famoso da Quarteira. A Carla já tinha nascido e tu quiseste ter um filho varão. Eu sabia que eras um malandro, mas quem governava o negócio era eu e como passavas o tempo enfiado comigo na cama, nunca pensei que dormisses com outras mulheres.
Como todas as mulheres, sou ingénua e gosto de acreditar que há homens bons, apesar de toda a merda em que fui criada, por isso deixei-te comprar o Alfa Romeo descapotável, relógios e fios de ouro, móveis de estilo e vinhos caros. Um dia, um alemão ofereceu uma fortuna pelo restaurante e decidimos tentar a nossa sorte em Lisboa. Alugámos um armazém em ruínas numa zona de cidade que de repente ficou na moda e em menos de três anos o nosso restaurante estava na moda. Ganhámos muito dinheiro, a Carla cresceu e o André nasceu, comprámos uma vivenda em Queijas e eu comecei a pensar que tinha direito a ser feliz.
Mas a vida é madrasta, a vida nunca é fácil para pessoas como eu, que ia descalça para a escola e me aquecia com brasas numa lata de salsichas. Fugiste com o nosso dinheiro para o Brasil há mais de sete anos e nunca mais quiseste saber de mim e dos miúdos. O restaurante continua na moda, a Carla vai para a faculdade e o André já está quase da minha altura e eu rezo para que não me apareças à frente, senão racho-te ao meio e dou-te cabo do canastro com o meu pulso de leoa e nunca mais levantas a cabeça.
Margarida Rebelo Pinto

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